terça-feira, 16 de junho de 2009

Debaixo das lonas azuis*

O dia nem amanheceu e já existe um mar azul de lonas e barracas na Praça do Trabalhador, tirando o sono da velha Maria Fumaça que tenta dormir, esquecida, ao lado da antiga estação ferroviária. É a Feira Hippie, a maior da América Latina, que se povoa de um emaranhado de gente que se esbarra entre sacolas e carrinhos.

Porém, tudo começa muito antes. Ainda na tarde de sábado, homens de corpos suados cantam, gritam e fazem barulho enquanto montam o esqueleto de estrutura metálica das barracas. As ruas ao redor da praça ficam interditadas e o trânsito deixa a maestria de lado para cultivar o caos.

De hippie, a feira carrega o nome e pouco menos de uma dúzia de hippies com suas esteiras repletas de artesanato: brincos, pulseiras, cachimbos, anéis. “Moça, moça, tenho um brinco que combina com você!”, “Ei, compra um pulseira para eu inteirar um espetinho para meu filho?”, “Psiu, você, pode vir até aqui?” e assim vão fazendo suas vendas, sustentando as famílias, valorizando sua mercadoria debaixo dos olhos da Maria Fumaça que parece já não mais se importar com o excesso de barulho, talvez porque a feira esteja ali há quase 14 anos.

Neste setor, quase sem representatividade por ser tão pequeno em relação ao tamanho da feira, os hippies dividem o espaço com artesãos diversos: uma senhora magra, com a pele marcada pelo sol, vende vasos de flores, enquanto outra, praticamente escondida atrás de uma pilha de mercadorias e linhas, termina uma peça em crochê. Por ali há sabonetes, cerâmicas, tapetes, quadros que parecem pintados em série e um senhor com seus enormes tachos de cobre. É uma ala pequena, sufocada por um emaranhado de barracas que comercializam roupas, sapatos, brinquedos.

A feira Hippie é uma cidade dentro de Goiânia e obedece a uma lógica totalmente diferente de direção, organização e espaço. “Olha a água mineral geladinha, refrigerante, cerveja”... Mais adiante uma voz se perde: “sacola reforçada, cinco reais a unidade, olha a sacola, dá licença pra eu passar com o carrinho...”. Ali, todos parecem ter pressa, tudo muda com a mesma rapidez em que a Praça do Trabalhador é ocupada no sábado e desocupada no domingo, deixando apenas o rastro de milhares de pessoas que insistem em jogar copos, papéis, latinhas e plásticos no chão.

Ao contrário do que ocorre nas outras feiras da cidade, não há uma área reservada à alimentação. Na Hippie se encontra de tudo, de comida goiana ao típico espetinho de gato e pastel de vento. Vez ou outra, uma barraca de alimentação surge entre as roupas, deixando um cheiro engordurado que não vai embora devido ao trançado de lonas que formam um corredor que protege do sol, mas não deixa o ar circular.

Entre apertadas barracas, há artistas. Pessoas com o dom do desenho fazem retratos na hora, seja por foto ou modelo vivo. Alguns tocam violão em troca de algumas moedas, com a esperança de que alguém compre o sonho de serem reconhecidos. Além das apresentações culturais espalhadas pela feira, há a Rádio Hippie, uma espécie de rádio comunitária que presta serviço de utilidade pública.

Entre um verso de Bruno e Marrone e um sertanejo universitário, anunciam documentos encontrados e pessoas perdidas. “A sua rádio Hippie prestando serviço para você, feirante”. Povoam a feira com um som um pouco mais alto que o da multidão e passam o dia falando sobre promoções, sorteios e distraindo quem faz daquele espaço, local de ofício.

Os filhos de muitos vendedores cresceram entre as barracas. Vieram os cabelos brancos e os netos, mas o trabalho continua. O domingo suado é sustento para o resto dos dias. Os feirantes fizeram a opção de não ter o tradicional almoço em família. É uma classe que festeja aniversários, dia dos pais, das mães, páscoa e qualquer outra data comemorativa debaixo da lona, entre uma venda e outra. É uma classe que não sabe ao certo seu destino, já que há projetos de retirada da Hippie da praça do trabalhador. Uma classe que se apega ao que pode ou aparece e, por isso, tira suas dúvidas com a cartomante apressada, que sempre se perde rápido demais no meio da multidão, debaixo das lonas azuis.

*texto editado.

Um comentário:

Widhey Henrique disse...

Uau, belo texto, aliás, ótimo! =)