sábado, 30 de agosto de 2014

Árvores gordas e palmeiras finas: o remorso eterno de não morar em Santa Teresa


                                        
                                                     Essas árvores antigas, esses muros imensos cercando o mistério dos parques e dos  casarões, tudo isso tem um poder de beleza e de sossego. Por um instante a gente imagina viver assim, fora de toda a agitação vã, para pensar com mais sossego na vida. (Rubem Braga - década de 1950.)

Meu caro Rubem,

A primeira vez que coloquei os pés em Santa Teresa, algo me disse que ali eu teria raízes. Talvez suspensas mas, ainda assim raízes. Meus olhos percorriam os muros altos, as casas que se escondiam entre árvores (desculpe, Rubem, não consegui encontrar as suas jaqueiras), e aquele sentimento de estar, talvez, um pouco mais perto do céu, ao me localizar longe do caos.

Você estava certo em relação a este sentimento que paira sob a cabeça dos moradores do Rio de Janeiro: mais de seis décadas depois, lá no fundo, todo mundo ainda carrega uma vontade de subir aquelas ruas de paralelepípedos com a vida nas malas. Ter, talvez, a sorte de se deparar com uma travessa batizada com seu nome, um pomar no fundo do quintal, ter o Rio de Janeiro emoldurado em sua janela. Mas, um a um vai desistindo: porque morreria de tédio, porque não tem transporte o suficiente ou simplesmente justificam com um sonoro “ah, é difícil”.

Sinto lhe informar, meu caro Rubem, que o bonde já não roda mais. Dizem que volta, a cidade aguarda em silêncio a retomada desta história. Até 2011, veja, 59 anos mais tarde que uma de suas publicações sobre o bairro, o bonde nunca havia parado. Até que morreram seis. E o acidente foi manchete em todos aqueles jornais que você já dizia que noticiavam tudo, menos a vida.

Eu, como você, me surpreenderia se um destes noticiários viesse nos mostrar a sombra das árvores, aquele ar mais fino. Todo mundo sabe, mas ninguém diz que Santa Teresa está acima do restante de boa parte do Rio. E não me refiro à geografia. A paz é muito grande para muitos suportarem. Ainda há pombos pelas ruas, ainda se escuta de longe, bem de longe, o burburinho da cidade lá embaixo. Mais de sessenta anos depois, Santa Teresa cresceu, mas ouso dizer que pouco mudou. Os sonhadores é que se agarram aos velhos casarões do bairro, sonham em fazer das inúmeras placas de “vende-se”, lares.

Ainda são os sonhadores que mantêm o bairro de pé, meu caro Braga. E é a pé que se escuta os sotaques do mundo entre o asfalto e o trilho do bonde. É por ali que os artistas abrem as suas casas e os senhores dão bom dia a quem passa, às oito da manhã.

Cercada, Santa Teresa divide limites por ladeiras tortuosas com o Centro, Glória, Laranjeiras, Cosme Velho, Catumbi, Catete e Rio Comprido. Mas, venho lhe contar que, sabido das coisas, o bairro ainda guarda sua válvula de escape: acessos ao Parque Nacional da Tijuca e ao Corcovado. Assim, Santa Teresa pode dormir em paz.

Tenho a impressão que você ainda gostaria dessa Santa, um tanto mais idosa: parou no tempo, as pessoas se chamam pelo nome, te pegam pela mão. Por outro lado, fizeram um cinema lá em cima, há samba na rua, bares, restaurantes, pousadas e barulho. Mas, não há grandes supermercados, nem bancos, e ouso a concordar com aquilo que você disse, sobre parecer ser um lugar onde a burocracia não chega. É um bairro blindado por seus grafitis que convivem em harmonia com os casarões centenários.

É como se houvesse uma lei: em Santa Teresa é impossível ser triste. Os problemas não sobem ladeiras, apenas descem. Talvez por isso o eterno desejo pela vida na mala, talvez por isso, o eterno adiamento desta concretização. Santa Teresa é uma eterna espera pela remota possibilidade de que toda a cidade tenha o mesmo ritmo, esse riso bobo que perdura entre um o trilho do bonde e um café.

Mas, sinto em discordar, meu velho Braga. Não consigo, mesmo na tristeza, sequer pensar em odiar as árvores lentas do século passado, nem sou tomada pelo mais remoto cheiro de mofo. E, ainda  ouso dizer que lá no fundo, depois desta toda capa ranzinza, você também sempre soube que a alma funciona melhor em Santa Teresa.

P.S.: E ah, caso não tenha percebido, eu sou uma dessas mulheres que você diz ser de um remoto mundo escondido, que aceitariam morar em Santa Teresa, levadas pelo braço.