segunda-feira, 19 de outubro de 2009

À um velho amigo

Ei, você que eu não vejo há tempos, me envie uma carta, um sinal de fumaça. Moro ainda no mesmo lugar.
 
Hoje achei uma foto antiga, desbotada e com cinco quilos a menos. Você sorria largo, eu olhava distraída. Os dias eram de paz.

Você falava que eu deveria mostrar as coisas que escrevia, eu achava bobagem. Hoje eu escrevo e você não lê. 
 
A gente põe a culpa na falta de tempo, na cidade grande, no que não se pode explicar, no quão diferentes nos tornamos.

Olho a fotografia: deixamos tudo para depois e agora nos sobra o que já foi.

Por isso eu peço: escreva-me uma carta, um bilhete, diga se você também sente falta. Os dias, cada vez mais longos, escondem o caos em sorrisos cordiais.

domingo, 18 de outubro de 2009

"O pássaro é livre na prisão do ar"

Eu o vi ali, parado. Ele tentava evitar a aproximação dos inimigos e acabou por sufocar cada um daqueles que o amava. Ele olhava o chão e sorria mudo, seco, fingindo não perceber que seu destino escapulira e que já não poderia fazer o tempo caminhar para trás.

Eu o vi queimando todas as certezas e cometendo o erro de refazer as mesmas escolhas ao flertar com o eco de desejos terceirizados. Eu juro que o vi desfazendo os nós, dissolvendo as amarras, mas sem vontade de voar.

Ele queria ler a sorte em uma xícara de café. Ele queria dizer que sente muito, mas na verdade não sente. Ele construíra as trincheiras. Ele asfixiou cada suspiro de futuro. Foi ele quem bateu a porta e deixou a alma tomando chuva.

No fundo, foi ele quem me deu essa raiva que não existe e esta vontade de fazê-lo reagir sem gritos.

(Ana Flávia Alberton, com a velha mania de desenterrar textos de seu blog antigo).

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Perfumes e espinhos

Como novidade, eu trouxe uma roseira. Talhei em madeira as verdades que não dá pra ouvir, retirei as cercas elétricas e abri as janelas.

Do passado, eu trouxe pés leves, propícios ao vôo, propícios a qualquer alegria momentânea, a qualquer loucura não pensada.

Para o futuro, uma caixa de sorrisos, um dia no inferno pra sobrevida em paraíso constante do saber viver.

Eu trouxe uma roseira. Pra saber dos espinhos, pra saber dos amores, pra saber da delicadeza. Eu trouxe uma roseira pra saber o luar, o lugar, o alguém.

Você não sabe?

Pois deveria saber que o saber vai além do cheiro das páginas de um livro velho.

Para você, eu trouxe um caderno em branco. Nem linhas há. O destino precisa seguir seu próprio punho, o entortar das letras, precisa da sua decisão para fazer um caminho.

Você ainda carrega no bolso aqueles bilhetes que já não recorda o remetente? Eles se transformaram em recados seus para você.

Eu juro que há algo pra se entender e uma porção de coisas para ignorar. Porém, as lembranças devem ser mantidas. Por isso a roseira, o perfume e os espinhos.

(Texto publicado no Essa Moça Tá Diferente! no dia 25 de setembro de 2009)